terça-feira, 30 de outubro de 2012

FIM


   "Cheguei a certo ponto de minha vida que penso ser melhor esquecer que lembrar." 

Mia Couto

domingo, 28 de outubro de 2012

Amar é pensar




"Passei toda a noite, sem dormir, vendo, sem espaço, a figura dela,
E vendo-a sempre de maneiras diferentes do que a encontro a ela.
Faço pensamentos com a recordação do que ela é quando me fala,
E em cada pensamento ela varia de acordo com a sua semelhança.
Amar é pensar.
E eu quase que me esqueço de sentir só de pensar nela.
Não sei bem o que quero, mesmo dela, e eu não penso senão nela.
Tenho uma grande distracção animada.
Quando desejo encontrá-la
Quase que prefiro não a encontrar,
Para não ter que a deixar depois.
Não sei bem o que quero, nem quero saber o que quero.
Quero só Pensar nela.
Não peço nada a ninguém, nem a ela, senão pensar." 

Alberto Caeiro


sábado, 20 de outubro de 2012

...






Me tornei antigo
porque a vida,
tantas vezes, se demorou.
E eu a esperei
como um rio aguarda a cheia. 


MIA COUTO

quarta-feira, 17 de outubro de 2012

Afinador...


Eu nasci para estar calado.Minha única vocação é o silêncio. Foi meu pai que me explicou: tenho inclinação para não falar,um talento para apurar silêncios.Escrevo bem, silêncios, no plural. Sim, porque não há um único silêncio. 
E todo o silêncio é música em estado de gravidez.

Quando me viam, parado e recatado, no meu invisível recanto, eu não estava pasmado. Estava desempenhado, de alma e corpo ocupados: tecia os delicados fios com que se fabrica a quietude. Eu era um afinador de silêncios.

MIA COUTO



sábado, 13 de outubro de 2012

O meu mundo


"O meu mundo não é como o dos outros, quero demais, exijo demais, há em mim uma sede de infinito, uma angústia constante que eu nem mesmo compreendo, pois estou longe de ser uma pessimista; sou antes uma exaltada, com uma alma intensa, violenta, atormentada, uma alma que se não sente bem onde está, que tem saudades... sei lá de quê!" 
Florbela Espanca

terça-feira, 9 de outubro de 2012

...




"Sempre amei por palavras muito mais
do que devia
são um perigo
as palavras
quando as soltamos já não há
regresso possível
ninguém pode não dizer o que já disse
apenas esquecer e o esquecimento acredita
é a mais lenta das feridas mortais
espalha-se insidiosamente pelo nosso corpo
e vai cortando a pele como se um barco
nos atravessasse de madrugada
e de repente acordamos um dia
desprevenidos e completamente
indefesos
um perigo
as palavras
mesmo agora
aparentemente tão tranquilas
neste claro momento em que as deixo em desalinho
sacudindo o pó dos velhos dias
sobre a cama em que te espero."
Alice Vieira


segunda-feira, 24 de setembro de 2012

Janelas de mim




"Entre muitas outras coisas, tu eras para mim uma janela através da qual podia ver as ruas. Sozinho não o podia fazer."

Franz Kafka



domingo, 23 de setembro de 2012


(postal)

"As coisas mais simples da vida são as mais extraordinárias, e só os sábios conseguem vê-las."

Paulo Coelho

quarta-feira, 12 de setembro de 2012

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«... Por vezes vemos uma gaivota e cremos que nos abeirámos da praia. 
Começamos a acreditar no mar...»
João Morgado 




sexta-feira, 31 de agosto de 2012

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"O que faço de bom, faço malfeito
Pareço artificial quando sincera
Mera falta de jeito pra viver...
Sou a filha predileta do defeito."
 

segunda-feira, 27 de agosto de 2012

...


"De todas as palavras escolhi água,

porque lágrima, chuva, porque mar

porque saliva, bátega, nascente

porque rio, porque sede, porque fonte.

De todas as palavras escolhi dar.



De todas as palavras escolhi flor

porque terra, papoila, cor, semente

porque rosa, recado, porque pele

porque pétala, pólen, porque vento.

De todas as palavras escolhi mel.



De todas as palavras escolhi voz

porque cantiga, riso, porque amor

porque partilha, boca, porque nós

porque segredo, água, mel e flor.



E porque poesia e porque adeus

de todas as palavras escolhi dor."







"O tempo tem aspectos misteriosos:

Um ano passa a toda a velocidade,

E um minuto, se estamos ansiosos

Parece, às vezes, uma eternidade.



Um dia ou é veloz ou pachorrento

-depende do que está a contecer-

O tempo de estudar, pode ser lento.

O tempo de brincar, passa a correr.



E aquela terrível arrelia

Que até te fez chorar, por ser tão má,

deixa passar o tempo. Por magia,

Quando olhamos para trás, já lá não está. "


Rosa Lobato de Faria



segunda-feira, 20 de agosto de 2012

...



"Pensei em tanta coisa quando vi o mar!
O sol batia nele e parecia que o mar era um chão coalhado de lasquinhas de prata!
E via-se que era tão grande!
Como o céu. Um céu que eu podia segurar na minha mão. Meti-me dentro da água de mar e era como se vestisse uma pele nova, como se respirasse pela primeira vez o ar…"

Eduardo Olímpio





"Uma parte de mim está onde tu estás, é a brisa que te cumprimenta
quando sais pela manhã, essa brisa que sopra devagar e faz mais le-
ves e mais livres os teus passos. 
Uma parte de mim é a luz paciente do sorriso que ofereces aos que
sofrem, aos que esperam, mas sobretudo aos que interrogam, aos
que nunca desistem de procurar, àqueles que não disfarçam a fome
de saber.
Uma parte de mim é o decidido caminho que tomas quando tens de
escolher entre vários, e a tua intuição é, nesse momento, talvez a
coisa mais importante que há no mundo.
Uma parte de mim é o teu profundo olhar sobre o pequeno mapa da
grandeza humana, a mais rápida forma de medir a distância das es-
trelas no limitado universo de cada um de nós.
Uma parte de mim é a tua sombra, essa estreitíssima sombra que voa
nas asas jovens do arroz, onde o desejo continua a escrever doridas
cartas de amor para uma alma líquida que flutua, ferida, sobre as tu-
as colinas interiores.
Uma parte de mim é o lobo que roçaga as tuas pernas, que te acom-
panha e te protege, mas que não vês, não sentes, não sabes, e não
tens consciência sequer de o ignorar.
Uma parte de mim é uma parte de ti, uma sede longínqua, longa, re-
pleta do que a cada um de nós apetece, do que cada um de nós ne- 
cessita, do que a cada um de nós pertence, essa sede que faz mais
justos os teus gestos e mais demorados os teus beijos.
Uma parte de mim acorda quando tu partes e deita-se quando tu che-
gas, é o anjo que tem o sorriso franco dos mais pobres e a alegria
dos sinos que acordam as raízes da infância.
Uma parte de mim é a canção que tu cantas nas longas caminhadas
junto ao mar, a erva indefesa que tu pisas, a dor que sentes por ter
acordado uma vez mais num tempo injusto, o pensamento branco
que diriges até Deus.
Uma parte de mim é tudo o que rejeitas, tudo o que te fere, tudo o
que te queima, tudo o que te é insuportável. Tudo o que ainda não
é capaz de merecer-te."
Joaquim Pessoa

quinta-feira, 16 de agosto de 2012

Cavalo à solta...


"Minha laranja amarga e doce
Meu poema feito de gomos de saudade
Minha pena pesada e leve
Secreta e pura
Minha passagem para o breve
Breve instante da loucura
Minha ousadia, meu galope, minha rédia,
Meu potro doido, minha chama,
Minha réstia de luz intensa, de voz aberta
Minha denúncia do que pensa
Do que sente a gente certa
Em ti respiro, em ti eu provo
Por ti consigo esta força que de novo
Em ti persigo, em ti percorro
Cavalo à solta pela margem do teu corpo
Minha alegria, minha amargura,
Minha coragem de correr contra a ternura
Minha laranja amarga e doce
Minha espada, meu poema feito de dois gumes
Tudo ou nada
Por ti renego, por ti aceito
Este corcel que não sussego
À desfilada no meu peito
Por isso digo canção castigo
Amêndoa, travo, corpo, alma
Amante, amigo
Por isso canto, por isso digo
Alpendre, casa, cama, arca do meu trigo
Minha alegria, minha amargura
Minha coragem de correr contra a ternura
Minha ousadia, minha aventura
Minha coragem de correr contra a ternura"

Ary dos Santos

...



"Estou agora ouvindo o grito ancestral dentro de mim:
parece que não sei quem é mais a criatura,
se eu ou o bicho. E confundo-me toda.
Fico ao que parece com medo de encarar instintos abafados 
que diante do bicho sou obrigada a assumir.
(...)
Nada existe de mais difícil que entregar-se ao instante.
Esta dificuldade é dor humana. 
É nossa. 
Eu me entrego em palavras..."
C.Lispector



domingo, 12 de agosto de 2012

Olhos da cor dos dias


De que são feitos os dias? 
- De pequenos desejos, 
vagarosas saudades, 
silenciosas lembranças. 

Entre mágoas sombrias, 
momentâneos lampejos: 
vagas felicidades, 
inactuais esperanças. 

De loucuras, de crimes, 
de pecados, de glórias 
- do medo que encadeia 
todas essas mudanças. 

Dentro deles vivemos, 
dentro deles choramos, 
em duros desenlaces 
e em sinistras alianças... 

Cecília Meireles

sexta-feira, 10 de agosto de 2012

Metamorfose

 Trabalhos Sensíveis


“Se há uma coisa que tenho aprendido com os bichos-da-seda é que o ódio não faz falta neste mundo. À tardinha, recolho folhas frescas das amoreiras que se alinham ao longo da estrada nova, ao pé da escola ou da junta e guardo-as num saco de plástico transparente que levo dobrado no bolso de trás das calças de ganga. Quando chego a casa, abro as caixas de sapatos e disponho um par de folhas em cada uma. É à farta. Os bichos-da-seda regalam-se. Está claro que, antes de lhes pôr as folhas novas, lhes tiro os restos das velhas e lhes limpo as caganitas, pretas, duras, que pontuam o cartão. Quando me sentem nesse serviço, os bichos-da-seda ficam logo malucos, começam logo a correr, na sua velocidade lenta de lagartas. Eu sou capaz de distinguir essa azáfama, parece que nunca viram uma folha de amoreira. Gosto desse entusiasmo. Os bichos-da-seda dão-me muito mais amor porque eles são muito mais que eu.

 

Há vinte e tal anos, quando eu era pequeno, usava ter uma caixa de bichos-da-seda de cada vez e bastava-me, era até demasiado. Passava horas a apoquentar os animais. Destapava-os e ficava a assistir aos seus enredos. Noutras vezes, pegava-lhes e pousava-os, por exemplo, em cima da mesa. Com certas diferenças , eram como carimbos de brincar ou bonecos de guerra a brincar. O bicho-da-seda é de uma natureza muito tímida e essa minha falta de respeito acabava por matá-los. Ao fim de uma semana ou duas, por mais folhas de amoreira que lhes servisse, lá tinha de segurar aqueles corpos secos, finos, segurava-os com a ponta dos dedos, não tinham o viço da vida. Abria a janela e atirava-os para a terra do quintal.
Hoje, conhecendo muito melhor a espécie, a psicologia desta raça, sou capaz de imaginar o medo com que esses bichos-da-seda me encaravam. Sinto remorsos, sinto um peso no peito, sinto um ô. Já na adolescência, à medida que os fui deixando viver a sua vida, começaram a ser capazes de cumprir o seu ciclo. Melhor ou pior, sobreviviam até alcançarem a construção dos seus casulos, amarelos e leves, colados com fios às paredes da caixa. Aos poucos, fui aprendendo tudo aquilo que os bichos-da-seda tinham para me ensinar. Ainda hoje, diariamente, aprendo com eles. Quando acabo de os nutrir com folhas novas, guardo o saco com as que sobram no frigorífico. Volto a tapar cada uma das caixas e sei que eles ficam descansados debaixo dessa sombra. Sei também que eles conseguem sentir-me através das paredes de cartão, como eu consigo sentir cada um deles. Estamos ligados por esse invisível. Eu deixo-os ser bichos-da-seda e eles deixam-me ser pessoa.



Depois, transformados em borboletas, quando saem dos casulos, não é um momento feliz, é um momento da vida, uma fatalidade, é mesmo assim. Olhamo-nos e encolhemos os ombros, apesar de eles/elas não terem essa parte do corpo. Têm asas, grossas e feias. São tão diferentes das borboletas dos desenhos animados. São muito mais parecidos/as com as traças, castanhas e tóxicas, desorientadas  por cadeeiros no verão. Mas não têm culpa, não foi por escolha sua que se sujeitaram àquela  metamorfose. Nessa hora, resignamo-nos, consolamo-nos com a ideia de que tivemos aquilo que fomos capazes de apreender. Querer mais seria bruteza. Abro a janela, abro a caixa de sapatos, pousada  no parapeito, e vejo-os/as afastarem-se no ar, habituando-se ao mundo todo, tão grande, a voarem desengonçados/as, a tropeçarem em si próprios/as e a levarem um pedaço irrecuperável de mim nesse voo.
Eu caminho pelas ruas e passo por cães que, com frequência, ladram, mostram os dentes. Os bichos-da-seda não ladram. Se têm dentes, são tão pequenos, tão microscópicos, que não se sentem. Nos anos em que tenho mantido esta criação nunca assisti a uma disputa mínima entre dois bichos-da-seda. Têm maneira corteses, polidas. Por isso, não precisam de trela e, como sempre digo a quem me pergunta, são os melhores animais para guardar em casa, porque guardam-na pelo lado mais vulnerável: por dentro.” 
José Luís Peixoto

segunda-feira, 6 de agosto de 2012

Pelo retrovisor...



 Pelo retrovisor enxergamos tudo ao contrário
Letras, lados, lestes
O relógio de pulso pula de uma mão para outra
e na verdade… nada muda
(…)
Retrovisor é passado
É de vez em quando… do meu lado
Nunca é na frente
É o segundo mais tarde… próximo… seguinte
É o que passou e muitas vezes ninguém viu
Retrovisor nos mostra o que ficou;
o que partiu
O que agora só ficou no pensamento
Retrovisor é mesmice em dia de trânsito lento
Retrovisor mostra meus olhos com lembranças mal resolvidas
Mostra as ruas que escolhi… calçadas e avenidas
Deixa explícito que se vou pra frente
Coisas ficam para trás
A gente só nunca sabe…
que coisas são essas ♪
Fernando Anitelli (Teatro Mágico)

quinta-feira, 26 de julho de 2012

Com'pensa'dor


"É que o amor nem sempre é uma palavra de uso, aquela que permite a passagem à comunicação; mais exacta de dois seres, a não ser que nos fale, de súbito, o sentido da despedida, e que cada um de nós leve, consigo, o outro, deixando atrás de si o próprio ser, como se uma troca de almas fosse possível neste mundo. Então, é natural que voltes atrás e me peças: «Vem comigo!», e devo dizer-te que muitas vezes pensei em fazer isso mesmo, mas era tarde, isto é, a porta tinha-se fechado até outro dia, que é aquele que acaba por nunca chegar, e então as palavras caem no vazio, como se nunca tivessem sido pensadas."

Nuno Júdice

A menina do corvo...


A menina do corvo convida-me a entrar em sua casa...


aceito, descalço-me e entro.

                                     
                                                     Apresenta-me os  amigos e...


 da janela do seu quarto, mostra-me com orgulho a fila de devotos que percorrem a calçada da mesquita de Haji Ali...



Pede-me uma fotografia.


Sorri ao olhar-se e  ao olhar-me sorri.


                                       Aponta para os brincos da Sara e deseja-os...

      
                guarda-os na mão bem fechada, talvez com medo que o corvo os leve. Sorri-me pela última vez, e enquanto fecha a porta, ouço a sua voz de menina...
-Namaste!


quarta-feira, 25 de julho de 2012

Eu sei muito pouco...


“Ao passo que amar eu posso até à hora de morrer.
Amar não acaba.
É como se o mundo estivesse à minha espera.
E eu vou ao encontro.
Ao que me espera.
Eu sei muito pouco, mas tenho a meu favor tudo o que não sei.”
C.Lispector






terça-feira, 17 de julho de 2012

A viagem...


"A viagem não acaba nunca. Só os viajantes acabam. E mesmo estes podem prolongar-se em memória, em lembrança, em narrativa (…) O fim de uma viagem é apenas o começo de outra. (…) É preciso voltar aos passos que foram dados, para repetir e para traçar caminhos novos ao lado deles. É preciso recomeçar a viagem. Sempre."
José Saramago

sexta-feira, 22 de junho de 2012

Para ti Minha Maria


UM POEMA

"Não tenhas medo, ouve:
É um poema
Um misto de oração e de feitiço...
Sem qualquer compromisso,
Ouve-o atentamente,
De coração lavado.
Poderás decorá-lo
E rezá-lo
Ao deitar
Ao levantar,
Ou nas restantes horas de tristeza.
Na segura certeza
De que mal não te faz.
E pode acontecer que te dê paz... "



Miguel Torga

quinta-feira, 21 de junho de 2012

Um dia...distraiu-se!!



"A vida inteira tomara cuidado em não ser grande dentro de si para não ter dor."

Clarice Lispector 

sexta-feira, 15 de junho de 2012

Amiga...



"Abre a esperança que corre da memória para a tua vontade e que há já muitos séculos foi rio, manhã e horizonte.
Abre-a como fazes com as coisas que te dou."

Joaquim Pessoa

terça-feira, 12 de junho de 2012

Texto para mim








Saber é lembrar-se.

"Zé Luís, nunca te esqueças dos homens que puxam riquexós nas ruas de Deli. Nas subidas, levantam-se do banco das bicicletas para usarem o peso inteiro do corpo em cada pedalada. No banco do riquexó, podem ir sentadas três pessoas, quatro, uma família com filhos ao colo, pode estar empilhada uma altura de sacos, madeira, pedras, barras de ferro. Os homens que puxam riquexós nas ruas de Deli têm vinte, trinta ou sessenta anos, parecem ter setenta, e vestem todos os dias a mesma camisa rasgada, os pés desfazem-se nos chinelos, as mãos agarram o guiador da bicicleta porque esse é o seu ponto de apoio no mundo, é ele que os impede de se afogarem no pó: terra castanha que se cola ao suor. Os homens que puxam riquexós nas ruas de Deli são capazes de sorrir debaixo dessa terra que os cobre, os seus olhos existem; são capazes de dizer algumas palavras em inglês, thank you, sir.

Quando o trânsito não tem solução, quando a estrada é um muro de camiões feitos de lata e parados, motas a passarem pelas folgas estreitas de autocarros negros como galeras, carros antigos, vacas desentendidas, cães exaustos, e pessoas em todas as direcções, esses homens de ossos desenhados na pele do rosto são capazes de levantar os riquexós no ar, de passá-los sobre os separadores centrais e de continuar a puxá-los, todo o seu peso, no outro lado da estrada, em contramão. Não te esqueças deles, Zé Luís. Não te esqueças da sua vontade muito maior do que a miséria, muito maior do que todas as facas, todo o veneno. Esses homens foram aqueles meninos que, hoje, agora, caminham sozinhos nessas mesmas ruas de Deli e estendem a mão a pedir uma rupia ou brincam, esquecidos das buzinas que se embaraçam à sua volta. As suas mães, vestidas com saris, continuam a cavar buracos na berma da estrada, a carregar alguidares com terra e pedras à cabeça. Os seus pais continuam a atravessar a cidade a pé apenas para chegarem ao outro lado e regressarem sem nada. O calor queima-os a todos por igual.

Por isso e por mais do que isso, não te esqueças dos homens que puxam riquexós nas ruas de Deli, Zé Luís. Depois de quilómetros a puxarem um casal de namorados, o rapaz irá pagar-lhes 10 rupias (60 rupias = 1 euro, mais ou menos) e se o homem, ainda sentado no banco da bicicleta, achar que merece 20, se abrir a boca para dizer duas palavras abafadas em hindi, o rapaz há-de dar-lhe dois murros onde o apanhar, no peito ou na cara. E o homem que puxa o riquexó há-de encolher-se porque estará já rodeado por muitos outros rapazes, de castas mais altas, que o olham com o mesmo desprezo do casal de namorados. Como te atreves?

Durante o dia, os homens que puxam riquexós nas ruas de Deli poderão trocar uma nota suja por pão (naan) e água. Enquanto o estiverem a mastigar, terão os olhos abertos e sentir-se-ão privilegiados. À sua volta, monges com os braços cortados pelos pulsos, cegos agarrados às paredes, raparigas despenteadas a vasculharem montes de lixo. Ao serão, os homens dobrar-se-ão sobre o banco do riquexó e, após instantes, poderão adormecer por fim. Se alguém chegar e lhes empurrar os ombros, serão capazes de reconstruir a organização dos ossos, passar a palma da mão aberta pelo rosto, lixa, e pedalar até onde for preciso, 10 rupias. O que se espera da vida? Há um corpo, a pele, e há o sofrimento que se é capaz de conceber, o conforto que se desconhece. Zé Luís, os homens que puxam riquexós nas ruas de Deli estão neste momento a sonhar com aquilo que rejeitas e agradecer aquilo que deixaste de sentir. Não são eles que correm o risco de se esquecer da vida, és tu. O teu padrinho tinha uma bicicleta igual àquela com que eles puxam o riquexó. Lembras-te ainda de como soava a sua campainha à entrada da rua de São João? Lembras-te ainda da sua voz quando falava para ti?

Quanto estiveres a ponto de te preocupar com merdas, os dilemas da poesia portuguesa contemporânea, o IRS, o código do multibanco, os carros que te roubam o estacionamento, a falta de rede no telemóvel, as reuniões de condomínios, o tampo da sanita, lembra-te dos homens que puxam riquexós nas ruas de Deli. É essa a tua obrigação.

Nunca te esqueças do mundo, Zé Luís.

Podes estar descansado, Zé Luís. Eu não me esqueço."


José Luís Peixoto, in revista Visão (Abril, 2010)