sexta-feira, 31 de agosto de 2012

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"O que faço de bom, faço malfeito
Pareço artificial quando sincera
Mera falta de jeito pra viver...
Sou a filha predileta do defeito."
 

segunda-feira, 27 de agosto de 2012

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"De todas as palavras escolhi água,

porque lágrima, chuva, porque mar

porque saliva, bátega, nascente

porque rio, porque sede, porque fonte.

De todas as palavras escolhi dar.



De todas as palavras escolhi flor

porque terra, papoila, cor, semente

porque rosa, recado, porque pele

porque pétala, pólen, porque vento.

De todas as palavras escolhi mel.



De todas as palavras escolhi voz

porque cantiga, riso, porque amor

porque partilha, boca, porque nós

porque segredo, água, mel e flor.



E porque poesia e porque adeus

de todas as palavras escolhi dor."







"O tempo tem aspectos misteriosos:

Um ano passa a toda a velocidade,

E um minuto, se estamos ansiosos

Parece, às vezes, uma eternidade.



Um dia ou é veloz ou pachorrento

-depende do que está a contecer-

O tempo de estudar, pode ser lento.

O tempo de brincar, passa a correr.



E aquela terrível arrelia

Que até te fez chorar, por ser tão má,

deixa passar o tempo. Por magia,

Quando olhamos para trás, já lá não está. "


Rosa Lobato de Faria



segunda-feira, 20 de agosto de 2012

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"Pensei em tanta coisa quando vi o mar!
O sol batia nele e parecia que o mar era um chão coalhado de lasquinhas de prata!
E via-se que era tão grande!
Como o céu. Um céu que eu podia segurar na minha mão. Meti-me dentro da água de mar e era como se vestisse uma pele nova, como se respirasse pela primeira vez o ar…"

Eduardo Olímpio





"Uma parte de mim está onde tu estás, é a brisa que te cumprimenta
quando sais pela manhã, essa brisa que sopra devagar e faz mais le-
ves e mais livres os teus passos. 
Uma parte de mim é a luz paciente do sorriso que ofereces aos que
sofrem, aos que esperam, mas sobretudo aos que interrogam, aos
que nunca desistem de procurar, àqueles que não disfarçam a fome
de saber.
Uma parte de mim é o decidido caminho que tomas quando tens de
escolher entre vários, e a tua intuição é, nesse momento, talvez a
coisa mais importante que há no mundo.
Uma parte de mim é o teu profundo olhar sobre o pequeno mapa da
grandeza humana, a mais rápida forma de medir a distância das es-
trelas no limitado universo de cada um de nós.
Uma parte de mim é a tua sombra, essa estreitíssima sombra que voa
nas asas jovens do arroz, onde o desejo continua a escrever doridas
cartas de amor para uma alma líquida que flutua, ferida, sobre as tu-
as colinas interiores.
Uma parte de mim é o lobo que roçaga as tuas pernas, que te acom-
panha e te protege, mas que não vês, não sentes, não sabes, e não
tens consciência sequer de o ignorar.
Uma parte de mim é uma parte de ti, uma sede longínqua, longa, re-
pleta do que a cada um de nós apetece, do que cada um de nós ne- 
cessita, do que a cada um de nós pertence, essa sede que faz mais
justos os teus gestos e mais demorados os teus beijos.
Uma parte de mim acorda quando tu partes e deita-se quando tu che-
gas, é o anjo que tem o sorriso franco dos mais pobres e a alegria
dos sinos que acordam as raízes da infância.
Uma parte de mim é a canção que tu cantas nas longas caminhadas
junto ao mar, a erva indefesa que tu pisas, a dor que sentes por ter
acordado uma vez mais num tempo injusto, o pensamento branco
que diriges até Deus.
Uma parte de mim é tudo o que rejeitas, tudo o que te fere, tudo o
que te queima, tudo o que te é insuportável. Tudo o que ainda não
é capaz de merecer-te."
Joaquim Pessoa

quinta-feira, 16 de agosto de 2012

Cavalo à solta...


"Minha laranja amarga e doce
Meu poema feito de gomos de saudade
Minha pena pesada e leve
Secreta e pura
Minha passagem para o breve
Breve instante da loucura
Minha ousadia, meu galope, minha rédia,
Meu potro doido, minha chama,
Minha réstia de luz intensa, de voz aberta
Minha denúncia do que pensa
Do que sente a gente certa
Em ti respiro, em ti eu provo
Por ti consigo esta força que de novo
Em ti persigo, em ti percorro
Cavalo à solta pela margem do teu corpo
Minha alegria, minha amargura,
Minha coragem de correr contra a ternura
Minha laranja amarga e doce
Minha espada, meu poema feito de dois gumes
Tudo ou nada
Por ti renego, por ti aceito
Este corcel que não sussego
À desfilada no meu peito
Por isso digo canção castigo
Amêndoa, travo, corpo, alma
Amante, amigo
Por isso canto, por isso digo
Alpendre, casa, cama, arca do meu trigo
Minha alegria, minha amargura
Minha coragem de correr contra a ternura
Minha ousadia, minha aventura
Minha coragem de correr contra a ternura"

Ary dos Santos

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"Estou agora ouvindo o grito ancestral dentro de mim:
parece que não sei quem é mais a criatura,
se eu ou o bicho. E confundo-me toda.
Fico ao que parece com medo de encarar instintos abafados 
que diante do bicho sou obrigada a assumir.
(...)
Nada existe de mais difícil que entregar-se ao instante.
Esta dificuldade é dor humana. 
É nossa. 
Eu me entrego em palavras..."
C.Lispector



domingo, 12 de agosto de 2012

Olhos da cor dos dias


De que são feitos os dias? 
- De pequenos desejos, 
vagarosas saudades, 
silenciosas lembranças. 

Entre mágoas sombrias, 
momentâneos lampejos: 
vagas felicidades, 
inactuais esperanças. 

De loucuras, de crimes, 
de pecados, de glórias 
- do medo que encadeia 
todas essas mudanças. 

Dentro deles vivemos, 
dentro deles choramos, 
em duros desenlaces 
e em sinistras alianças... 

Cecília Meireles

sexta-feira, 10 de agosto de 2012

Metamorfose

 Trabalhos Sensíveis


“Se há uma coisa que tenho aprendido com os bichos-da-seda é que o ódio não faz falta neste mundo. À tardinha, recolho folhas frescas das amoreiras que se alinham ao longo da estrada nova, ao pé da escola ou da junta e guardo-as num saco de plástico transparente que levo dobrado no bolso de trás das calças de ganga. Quando chego a casa, abro as caixas de sapatos e disponho um par de folhas em cada uma. É à farta. Os bichos-da-seda regalam-se. Está claro que, antes de lhes pôr as folhas novas, lhes tiro os restos das velhas e lhes limpo as caganitas, pretas, duras, que pontuam o cartão. Quando me sentem nesse serviço, os bichos-da-seda ficam logo malucos, começam logo a correr, na sua velocidade lenta de lagartas. Eu sou capaz de distinguir essa azáfama, parece que nunca viram uma folha de amoreira. Gosto desse entusiasmo. Os bichos-da-seda dão-me muito mais amor porque eles são muito mais que eu.

 

Há vinte e tal anos, quando eu era pequeno, usava ter uma caixa de bichos-da-seda de cada vez e bastava-me, era até demasiado. Passava horas a apoquentar os animais. Destapava-os e ficava a assistir aos seus enredos. Noutras vezes, pegava-lhes e pousava-os, por exemplo, em cima da mesa. Com certas diferenças , eram como carimbos de brincar ou bonecos de guerra a brincar. O bicho-da-seda é de uma natureza muito tímida e essa minha falta de respeito acabava por matá-los. Ao fim de uma semana ou duas, por mais folhas de amoreira que lhes servisse, lá tinha de segurar aqueles corpos secos, finos, segurava-os com a ponta dos dedos, não tinham o viço da vida. Abria a janela e atirava-os para a terra do quintal.
Hoje, conhecendo muito melhor a espécie, a psicologia desta raça, sou capaz de imaginar o medo com que esses bichos-da-seda me encaravam. Sinto remorsos, sinto um peso no peito, sinto um ô. Já na adolescência, à medida que os fui deixando viver a sua vida, começaram a ser capazes de cumprir o seu ciclo. Melhor ou pior, sobreviviam até alcançarem a construção dos seus casulos, amarelos e leves, colados com fios às paredes da caixa. Aos poucos, fui aprendendo tudo aquilo que os bichos-da-seda tinham para me ensinar. Ainda hoje, diariamente, aprendo com eles. Quando acabo de os nutrir com folhas novas, guardo o saco com as que sobram no frigorífico. Volto a tapar cada uma das caixas e sei que eles ficam descansados debaixo dessa sombra. Sei também que eles conseguem sentir-me através das paredes de cartão, como eu consigo sentir cada um deles. Estamos ligados por esse invisível. Eu deixo-os ser bichos-da-seda e eles deixam-me ser pessoa.



Depois, transformados em borboletas, quando saem dos casulos, não é um momento feliz, é um momento da vida, uma fatalidade, é mesmo assim. Olhamo-nos e encolhemos os ombros, apesar de eles/elas não terem essa parte do corpo. Têm asas, grossas e feias. São tão diferentes das borboletas dos desenhos animados. São muito mais parecidos/as com as traças, castanhas e tóxicas, desorientadas  por cadeeiros no verão. Mas não têm culpa, não foi por escolha sua que se sujeitaram àquela  metamorfose. Nessa hora, resignamo-nos, consolamo-nos com a ideia de que tivemos aquilo que fomos capazes de apreender. Querer mais seria bruteza. Abro a janela, abro a caixa de sapatos, pousada  no parapeito, e vejo-os/as afastarem-se no ar, habituando-se ao mundo todo, tão grande, a voarem desengonçados/as, a tropeçarem em si próprios/as e a levarem um pedaço irrecuperável de mim nesse voo.
Eu caminho pelas ruas e passo por cães que, com frequência, ladram, mostram os dentes. Os bichos-da-seda não ladram. Se têm dentes, são tão pequenos, tão microscópicos, que não se sentem. Nos anos em que tenho mantido esta criação nunca assisti a uma disputa mínima entre dois bichos-da-seda. Têm maneira corteses, polidas. Por isso, não precisam de trela e, como sempre digo a quem me pergunta, são os melhores animais para guardar em casa, porque guardam-na pelo lado mais vulnerável: por dentro.” 
José Luís Peixoto

segunda-feira, 6 de agosto de 2012

Pelo retrovisor...



 Pelo retrovisor enxergamos tudo ao contrário
Letras, lados, lestes
O relógio de pulso pula de uma mão para outra
e na verdade… nada muda
(…)
Retrovisor é passado
É de vez em quando… do meu lado
Nunca é na frente
É o segundo mais tarde… próximo… seguinte
É o que passou e muitas vezes ninguém viu
Retrovisor nos mostra o que ficou;
o que partiu
O que agora só ficou no pensamento
Retrovisor é mesmice em dia de trânsito lento
Retrovisor mostra meus olhos com lembranças mal resolvidas
Mostra as ruas que escolhi… calçadas e avenidas
Deixa explícito que se vou pra frente
Coisas ficam para trás
A gente só nunca sabe…
que coisas são essas ♪
Fernando Anitelli (Teatro Mágico)