sexta-feira, 10 de agosto de 2012

Metamorfose

 Trabalhos Sensíveis


“Se há uma coisa que tenho aprendido com os bichos-da-seda é que o ódio não faz falta neste mundo. À tardinha, recolho folhas frescas das amoreiras que se alinham ao longo da estrada nova, ao pé da escola ou da junta e guardo-as num saco de plástico transparente que levo dobrado no bolso de trás das calças de ganga. Quando chego a casa, abro as caixas de sapatos e disponho um par de folhas em cada uma. É à farta. Os bichos-da-seda regalam-se. Está claro que, antes de lhes pôr as folhas novas, lhes tiro os restos das velhas e lhes limpo as caganitas, pretas, duras, que pontuam o cartão. Quando me sentem nesse serviço, os bichos-da-seda ficam logo malucos, começam logo a correr, na sua velocidade lenta de lagartas. Eu sou capaz de distinguir essa azáfama, parece que nunca viram uma folha de amoreira. Gosto desse entusiasmo. Os bichos-da-seda dão-me muito mais amor porque eles são muito mais que eu.

 

Há vinte e tal anos, quando eu era pequeno, usava ter uma caixa de bichos-da-seda de cada vez e bastava-me, era até demasiado. Passava horas a apoquentar os animais. Destapava-os e ficava a assistir aos seus enredos. Noutras vezes, pegava-lhes e pousava-os, por exemplo, em cima da mesa. Com certas diferenças , eram como carimbos de brincar ou bonecos de guerra a brincar. O bicho-da-seda é de uma natureza muito tímida e essa minha falta de respeito acabava por matá-los. Ao fim de uma semana ou duas, por mais folhas de amoreira que lhes servisse, lá tinha de segurar aqueles corpos secos, finos, segurava-os com a ponta dos dedos, não tinham o viço da vida. Abria a janela e atirava-os para a terra do quintal.
Hoje, conhecendo muito melhor a espécie, a psicologia desta raça, sou capaz de imaginar o medo com que esses bichos-da-seda me encaravam. Sinto remorsos, sinto um peso no peito, sinto um ô. Já na adolescência, à medida que os fui deixando viver a sua vida, começaram a ser capazes de cumprir o seu ciclo. Melhor ou pior, sobreviviam até alcançarem a construção dos seus casulos, amarelos e leves, colados com fios às paredes da caixa. Aos poucos, fui aprendendo tudo aquilo que os bichos-da-seda tinham para me ensinar. Ainda hoje, diariamente, aprendo com eles. Quando acabo de os nutrir com folhas novas, guardo o saco com as que sobram no frigorífico. Volto a tapar cada uma das caixas e sei que eles ficam descansados debaixo dessa sombra. Sei também que eles conseguem sentir-me através das paredes de cartão, como eu consigo sentir cada um deles. Estamos ligados por esse invisível. Eu deixo-os ser bichos-da-seda e eles deixam-me ser pessoa.



Depois, transformados em borboletas, quando saem dos casulos, não é um momento feliz, é um momento da vida, uma fatalidade, é mesmo assim. Olhamo-nos e encolhemos os ombros, apesar de eles/elas não terem essa parte do corpo. Têm asas, grossas e feias. São tão diferentes das borboletas dos desenhos animados. São muito mais parecidos/as com as traças, castanhas e tóxicas, desorientadas  por cadeeiros no verão. Mas não têm culpa, não foi por escolha sua que se sujeitaram àquela  metamorfose. Nessa hora, resignamo-nos, consolamo-nos com a ideia de que tivemos aquilo que fomos capazes de apreender. Querer mais seria bruteza. Abro a janela, abro a caixa de sapatos, pousada  no parapeito, e vejo-os/as afastarem-se no ar, habituando-se ao mundo todo, tão grande, a voarem desengonçados/as, a tropeçarem em si próprios/as e a levarem um pedaço irrecuperável de mim nesse voo.
Eu caminho pelas ruas e passo por cães que, com frequência, ladram, mostram os dentes. Os bichos-da-seda não ladram. Se têm dentes, são tão pequenos, tão microscópicos, que não se sentem. Nos anos em que tenho mantido esta criação nunca assisti a uma disputa mínima entre dois bichos-da-seda. Têm maneira corteses, polidas. Por isso, não precisam de trela e, como sempre digo a quem me pergunta, são os melhores animais para guardar em casa, porque guardam-na pelo lado mais vulnerável: por dentro.” 
José Luís Peixoto

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